Água para todos? Em Pernambuco, não!

O governo de Pernambuco avança com o processo de privatização parcial da Companhia Pernambucana de Saneamento e Abastecimento (Compesa), uma decisão que merece análise crítica profunda. O modelo proposto pelo BNDES, que prevê a concessão da distribuição de água e coleta de esgoto por 35 anos em troca de aproximadamente 18 bilhões de reais, pode representar um retrocesso significativo para o acesso universal ao saneamento no estado.

A privatização ocorre em um momento particularmente crítico para Pernambuco. Com 117 dos 184 municípios em estado de emergência devido à estiagem e 54 dos 172 mananciais em nível crítico ou de alerta, o estado enfrenta sua maior crise hídrica. A Compesa já implementou um regime especial de abastecimento que durará três meses, evidenciando a gravidade da situação.

Neste cenário, transferir a responsabilidade pela distribuição de água para a iniciativa privada parece uma medida contraproducente. Como alertou o deputado federal Pedro Campos, o projeto não apresenta estratégias concretas para enfrentar o principal problema: “a falta d’água nas casas das pessoas”. O rodízio de abastecimento que já atinge diversas cidades e bairros de Recife e Olinda deveria ser prioridade absoluta, não questão secundária.

O professor Heitor Scalambrini, da UFPE, toca no ponto central da questão ao destacar que transferir serviços essenciais como água para o setor privado esbarra nos “objetivos do setor privado, que é o lucro”. Esta contradição fundamental entre a necessidade universal de acesso à água e a busca por rentabilidade cria tensões inevitáveis.

A experiência de outros estados brasileiros já demonstra as consequências desta lógica. Como observou a vereadora Kari Santos, a privatização em Rio de Janeiro, Sergipe e Alagoas resultou em aumentos significativos das tarifas sociais. A perda do controle estatal sobre os preços representa uma ameaça direta às populações mais vulneráveis, justamente aquelas que mais dependem dos serviços públicos de saneamento.

A estratégia de dividir Pernambuco em duas macrorregiões para viabilizar a concessão parcial revela outra preocupação. A primeira região, composta por 24 municípios do Sertão Central, Araripe e São Francisco, concentra áreas tradicionalmente menos lucrativas e com maior dificuldade de acesso. Há risco real de que essas regiões recebam investimentos insuficientes, perpetuando desigualdades históricas no acesso ao saneamento.

A Região Metropolitana do Recife, Zona da Mata e Agreste, que compõem a segunda macrorregião, já experimentaram a privatização através do programa Cidade Saneada, operado pela BRK. Os resultados desta experiência deveriam ser cuidadosamente avaliados antes de expandir o modelo, especialmente considerando as críticas de representantes sindicais como José Barbosa, que considera o novo formato ainda pior que as parcerias público privadas anteriores.

Embora o governo estadual justifique a privatização pela necessidade de cumprir as metas do Marco Legal do Saneamento até 2033, esta argumentação é questionável. A universalização do saneamento deveria ser perseguida através do fortalecimento do serviço público, não de sua fragmentação. O prazo estabelecido pelo marco legal não pode servir como pretexto para decisões precipitadas que comprometem o controle público sobre recursos essenciais.

A promessa de aplicar os recursos da concessão na própria Compesa, embora positiva em teoria, não oferece garantias suficientes de que os investimentos serão direcionados adequadamente ou que compensarão a perda de controle sobre a distribuição.

As audiências públicas em Recife, Caruaru, Salgueiro e Petrolina representam um passo importante para o debate democrático, mas são insuficientes diante da magnitude da decisão. A privatização de serviços essenciais demanda discussão mais ampla e prolongada com a sociedade civil, movimentos populares, especialistas e trabalhadores do setor.

As vozes críticas de deputados, sindicalistas, professores universitários e vereadores não podem ser ignoradas em nome da urgência de cumprir prazos ou atrair investimentos privados. Estas perspectivas representam preocupações legítimas sobre soberania, equidade social e sustentabilidade do modelo proposto.

A privatização da distribuição de água e coleta de esgoto da Compesa representa uma aposta arriscada no momento em que Pernambuco mais precisa de soluções coordenadas e universais para seus problemas hídricos. Em vez de fragmentar o sistema entre público e privado, o estado deveria investir no fortalecimento da Compesa como empresa pública capaz de atender às necessidades de toda a população.

A água é direito humano fundamental, não commodity. Sua gestão deve priorizar o acesso universal e equitativo, objetivos que podem ser comprometidos pela lógica de mercado. Pernambuco tem a oportunidade de repensar este processo e buscar alternativas que mantenham o controle público sobre este recurso estratégico, garantindo que as necessidades da população, especialmente a mais vulnerável, permaneçam no centro das decisões sobre saneamento.

O debate sobre a privatização da Compesa não pode ser encerrado sem que estas questões fundamentais sejam adequadamente respondidas. O futuro do saneamento em Pernambuco merece discussão mais profunda e soluções mais corajosas do que simplesmente transferir responsabilidades para o setor privado.

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