“Madalena vivia como uma sombra dentro de casa, acuada pelo autoritarismo e pela desconfiança do marido.” (São Bernardo, Graciliano Ramos)
A frase que descreve o cotidiano silencioso de Madalena escancara a estrutura de violência simbólica e psicológica vivida por muitas mulheres no sertão brasileiro ontem e hoje. Em São Bernardo, Graciliano Ramos nos oferece um retrato cru da desigualdade de gênero, ambientado em uma cidade interiorana que poderia facilmente ser confundida com tantas do Sertão do Pajeú. A submissão imposta a Madalena por Paulo Honório é mais do que um drama conjugal; é a representação de um sistema que ainda naturaliza a opressão da mulher e legitima o controle masculino sobre seus corpos, pensamentos e decisões.
Em Pernambuco, especialmente no Sertão do Pajeú, essa realidade permanece dolorosamente atual. De acordo com dados recentes da Secretaria de Defesa Social de Pernambuco, apenas entre janeiro e maio de 2025, 23.328 mulheres foram vítimas de violência doméstica e familiar no Estado. Desses casos, 894 ocorreram nas 17 cidades que compõem o Sertão do Pajeú, revelando que a brutalidade cotidiana contra a mulher segue firme onde o Estado e a sociedade ainda falham em garantir proteção e dignidade.
A cidade com o maior número de casos na região é Afogados da Ingazeira, que contabiliza 223 ocorrências registradas em apenas cinco meses. Os números, além de alarmantes, reforçam que as ações executadas pelo poder público, tanto estadual quanto municipal, não têm sido suficientes para conter ou reverter essa realidade. E talvez o maior erro esteja justamente na forma como o problema é tratado: como uma questão de segurança pública reduzida a gráficos e planilhas, em vez de ser reconhecido como uma violação sistemática de direitos humanos que destrói vidas, famílias e comunidades inteiras.
A violência contra a mulher não é um tema que diz respeito apenas às vítimas ou aos órgãos de justiça, é uma pauta urgente que convoca toda a sociedade. Homens e mulheres, poder público e instituições privadas, escolas e famílias: todos têm um papel na construção de uma cultura que rejeite a desigualdade de gênero e a normalização da agressão. Não é a ausência de leis rígidas que perpetua a violência, pois a legislação brasileira já prevê punições severas para crimes como o feminicídio. O verdadeiro problema reside na ausência de políticas públicas preventivas, integradas e contínuas.
A solução mais eficaz é estrutural e começa na base: nas escolas, por meio de uma educação que promova a equidade de gênero, o respeito mútuo e a desconstrução dos estereótipos que alimentam o machismo. A formação cidadã que reconhece a mulher como sujeito de direitos e não como propriedade precisa começar desde cedo, nos currículos, nas práticas pedagógicas e nas relações escolares.
Também é urgente ampliar o acesso à informação, fortalecer as redes de proteção às vítimas, garantir atendimento humanizado e criar espaços seguros de escuta e denúncia. Mais do que endurecer penas, é preciso enraizar uma cultura de não violência e de valorização da vida da mulher.
Enquanto uma mulher for agredida em silêncio, como Madalena em São Bernardo, o Pajeú e o Brasil continuarão falhando. Que os números não sirvam apenas para alimentar relatórios oficiais, mas para despertar consciências, indignar a sociedade e mobilizar ações reais. Porque a dor de uma mulher violentada não pode ser reduzida à estatística: ela é um chamado à ação, à justiça e à transformação.
Carina Acioly – Advogada