Agosto Lilás chega, todos os anos, com uma onda muito bem-vinda e necessária de eventos, campanhas e mobilizações. Em 2025, a mensagem “Não deixe chegar ao fim da linha. Ligue 180” reforça que a Lei Maria da Penha não é apenas um símbolo, como muitas pessoas erroneamente pensam: é proteção real de vidas.
Mas, se agosto é o pico de atenção, não pode ser o ponto final. Violência de gênero é um problema cotidiano – e a resposta também precisa ser.
No dia 7 de agosto, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) completou 19 anos. Reconhecida internacionalmente como a terceira melhor do mundo neste assunto, foi promulgada após muita mobilização social. Se hoje é difícil ser mulher em terras tupiniquins, antes era ainda pior: na falta de um arcabouço legal, as vítimas eram empurradas ainda mais para o silêncio. Precisamos entender, porém, que esse silenciamento mata.
Nossos dados são alarmantes: a 19ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública aponta recordes recentes de feminicídios e estupros. Inclusive, a prevalência de violência contra mulheres no Brasil supera a média global. Esses números não são meras estatísticas: são vidas interrompidas vítimas de um grave crime de ódio.
Tristemente, Pernambuco é o estado com mais mortes de mulheres no Nordeste, de acordo com o boletim anual Elas Vivem: um caminho de luta, da Rede de Observatórios da Segurança (2025).
Falo também da perspectiva de quem atua diretamente no terceiro setor. À frente da ONG Eu Quero Contar (@euquerocontar), fundada há pouco mais de um ano, vejo diariamente a força mobilizadora desta pauta. Somos cerca de 60 voluntárias e voluntários, de todas as regiões do país. Reunimos mais de 500 relatos de sobreviventes para um podcast e outros projetos paralelos que colocam essas vozes no centro do debate: são narrativas em primeira pessoa, tratadas com o respeito que merecem. Para nós, encarar o problema pela perspectiva das protagonistas é inegociável: mulheres já são tantas vezes ignoradas, culpabilizadas, julgadas e silenciadas pelo Sistema de Justiça e pela própria sociedade. São histórias que, no cotidiano, não encontram escuta nem apoio – entre amigos, colegas de trabalho, familiares – e que, muitas vezes, só ganham visibilidade quando viram nota na página policial.
Por mais incômodo que o tema seja, é preciso coragem para ouvir essas histórias antes que seja tarde, compreender o ciclo da violência e seus abusos silenciosos. E, principalmente, assumir a nossa responsabilidade coletiva para prevenir e combater a violência doméstica no Brasil.
Ainda, quero aproveitar o espaço para uma reflexão pragmática: defensoras e defensores de direitos humanos precisam de recursos para fazer os projetos saírem do papel. Como muitas ONGs, a Eu Quero Contar segue sem patrocínio de grande porte; não por falta de relevância, mas porque o fomento raramente alcança a base: os recursos (já escassos) ficam concentrados em poucas organizações. São poucos editais que, na prática, excluem iniciativas menores.
Apesar dos desafios, agosto prova que é possível, sim, mobilizar o país em grande escala. O próximo passo é manter a luz acesa nos demais meses.
Fica o apelo: que governos e empresas destinem orçamento; que fundações e doadores descentralizem e pulverizem recursos; que imprensa, escolas e universidades sustentem o debate de forma contínua. Que a rede de cuidado se fortaleça e ganhe capilaridade para tirar projetos do papel e chegar a quem precisa.
As “Marias” e “Penhas” que vieram antes de nós pagaram caro para que chegássemos até aqui. Honrar suas histórias é não aceitar que o cuidado e a proteção sejam sazonais.
“É preciso estar atento e forte” o ano inteiro.

Julia Poletine é Advogada, professora e pesquisadora com foco em políticas públicas inclusivas, democráticas e com perspectiva de gênero — atuando por meio de advocacy, ativismo de base e da articulação com a sociedade civil organizada e fundadora da ONG Eu Quero Contar.