Por Carina Acioly – Advogada Criminalista e professora universitária
Na última terça-feira, nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, o Estado deflagrou uma operação que entrou para a história, infelizmente, não pelos bons motivos. A ação, que mobilizou cerca de 2,5 mil agentes, resultou em mais de 120 mortos, sendo quatro deles policiais, e gerou escândalo por sua lógica e execução. Como advogada criminalista e professora comprometida com uma prática técnica, humana e estratégica, não posso deixar de ver nesse episódio não apenas uma tragédia, mas também a prova concreta de que o modelo adotado falhou em seu cerne.
Se o objetivo era atingir a cúpula da facção Comando Vermelho, como, por exemplo, capturar o líder conhecido como “Doca”, o resultado foi pífio. Não houve confirmação de que o principal alvo tenha sido localizado, tampouco de que os mandados foram efetivamente cumpridos em sua totalidade. Enquanto isso, o saldo foi o derramamento de vidas, o terror nas comunidades e o pânico generalizado. Ao adotar esse tipo de intervenção, o Estado não apenas tentou demonstrar força, mas também declarou guerra e, com isso, assumiu as consequências dessa escolha.
O que mais chama atenção, e também revolta, é o fato de que a operação parece ter sido conduzida com base em um roteiro voltado mais para o espetáculo e para a visibilidade do que para resultados reais. Assim, abandonou o essencial: a inteligência investigativa, o planejamento criterioso, o respeito à dignidade humana, a segurança das comunidades e até mesmo a proteção dos próprios agentes. Colocar policiais, muitos deles inexperientes, na linha de frente em territórios complexos, sem uma estratégia clara de ocupação ou de ação posterior, não é segurança pública; é guerra improvisada. Essa guerra, como se vê, mata muito e resolve pouco. A impressão é de que o Estado preferiu contabilizar corpos em vez de cumprir mandados, escolheu o confronto bruto em detrimento da reconstrução territorial e substituiu a política pública pelo palanque eleitoral.
Com frequência, governos que perseguem resultados voltados ao consumo político sacrificam o bem mais precioso: a vida. A cobertura internacional chegou a classificar o episódio como “o pior dia de violência da história do Rio”. Se esse diagnóstico estiver correto, é preciso questionar qual foi o ganho real para o Estado. Se uma das principais lideranças escapou, se o crime organizado não foi desmantelado e se as comunidades permanecem expostas e vulneráveis, então é inevitável concluir que a operação serviu apenas para derramar sangue, espalhar medo e enaltecer o poder da força, sem qualquer contribuição concreta para a segurança, a cidadania ou o controle efetivo da criminalidade.
A analogia com o Massacre do Carandiru não é exagerada. Em 1992, 111 presos foram mortos naquela tragédia, vítimas de uma avalanche de violência estatal cujas lições ainda ecoam no sistema penitenciário e no próprio pacto democrático. No caso recente, os números superaram aquele marco, e o modelo adotado parece repetir o mesmo roteiro: vidas negras e pobres tratadas como dano “aceitável”, operações transformadas em fim em si mesmas e impunidade garantida para os abusos cometidos. Se nada aprendemos com aquela ferida aberta, estamos fadados a repeti-la, pagando novamente o preço em vidas humanas.
É urgente romper esse ciclo. A segurança pública não pode se sustentar em massacres, espetáculos midiáticos ou respostas imediatistas voltadas a impressionar a opinião pública. Ela deve ser construída com base em inteligência, dados, integração entre polícia, Justiça e comunidade, além de treinamento adequado, comando único eficaz, ocupação territorial planejada e atenção ao pós-ação. Se a missão do Estado é proteger todas as pessoas, não pode conceber operações em que seja considerado “aceitável” que mais de cem pessoas morram, independentemente de estarem ou não envolvidas com o crime.
Como advogada e cidadã, faço um apelo ao poder público, aos parlamentares e à sociedade civil: é preciso questionar a quem interessa esse modelo de confronto e a quem servem os números de corpos tratados como troféus. Mais do que isso, é necessário repensar como reconstruir a política de segurança pública para que a preservação da vida seja, de fato, o objetivo central de qualquer operação. Se o sangue escorreu e as vidas foram ceifadas sem nenhum resultado prático, é dever de todos encerrar, aqui e agora, o ciclo da letalidade estatal e inaugurar um novo paradigma no combate ao crime, um paradigma que valorize a dignidade humana em vez de sacrificá-la em nome de uma suposta eficácia.



