Quando a tribuna ultrapassa o limite: imunidade parlamentar, ameaças e o direito à vida e à honra

Por Carina Acioly – advogada criminalista e professora universitária

No último 20 de agosto, a tribuna da Câmara dos Deputados foi palco de uma fala que incendiou o debate público: o deputado federal Zé Trovão (PL-SC) declarou que iria “acabar com a vida” do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Logo depois, recuou: disse que não falava da “vida pessoal”, mas da “injustiça” que atribuiu ao ministro. O problema é que, no Direito, palavras têm peso e, quando ultrapassam certos limites, nem mesmo a imunidade parlamentar consegue blindar o orador.

Esse episódio nos convida a revisitar os contornos da imunidade parlamentar e seus limites diante de bens jurídicos fundamentais, como a honra e a vida. Afinal, até onde vai a liberdade da palavra de um parlamentar?

A Constituição Federal, em seu artigo 53, estabelece que os deputados e senadores são invioláveis civil e penalmente por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. Essa é a chamada imunidade material, criada para proteger a independência do Legislativo e evitar perseguições políticas.

Parece amplo, mas esse “escudo protetor” não é uma licença para abusos. A imunidade tem uma função nobre: assegurar que parlamentares possam criticar, debater e propor sem medo de retaliação judicial. Mas não se confunde com impunidade.

No Direito Penal, a linha é clara: ameaça não é opinião. Ameaçar “acabar com a vida” de alguém, ainda que dentro da tribuna, enquadra-se no crime de ameaça (art. 147 do Código Penal) ou até em delitos mais graves, a depender do contexto.

O caso do ex-deputado Daniel Silveira, por exemplo, também é emblemático: discursos de ataque ao STF e incitação à violência não foram protegidos pela imunidade. O Supremo deixou cristalino que a imunidade não cobre crimes contra a vida, a honra ou a integridade das pessoas.

Portanto, ainda que um parlamentar tente dizer que falou “no calor da oratória”, quando o discurso se transforma em risco concreto, a proteção constitucional não se aplica.

No campo do Direito Eleitoral, a  jurisprudência também é firme: a imunidade material não protege falas ofensivas à honra de terceiros feitas em contexto de propaganda eleitoral.

Ou seja, se um parlamentar usa sua posição para transformar ataques pessoais em palanque político, a fala sai do manto da imunidade. A Justiça Eleitoral entende que, nesses casos, há responsabilidade civil, penal e eleitoral. Isso pode levar desde condenações por crimes contra a honra até cassação do mandato.

Em outras palavras: usar a tribuna para fazer política é legítimo; usá-la como palco de difamações ou ameaças é inaceitável e punível.

O episódio de Zé Trovão mostra, mais uma vez, que a democracia não pode ser confundida com licença para agredir. A imunidade parlamentar é uma garantia institucional, não um salvo conduto para violar direitos fundamentais.

No Direito Penal, os bens jurídicos da vida e da honra são invioláveis. No Direito Eleitoral, a lisura do processo e o respeito aos adversários são condições de legitimidade.

Por isso, quando a palavra ameaça destruir em vez de construir, a própria democracia reage: com responsabilização, julgamento e, se for o caso, perda do mandato.

Como advogada criminalista e estudiosa do Direito Público, costumo dizer que a imunidade não é capa de super-herói. Quem veste o mandato não ganha licença para ferir a dignidade alheia. Pelo contrário: ganha a responsabilidade de usar a palavra como instrumento de debate, não como arma de destruição.

E esse é o ponto que precisamos repetir quantas vezes for necessário: democracia exige responsabilidade. Imunidade não é, e nunca será, sinônimo de impunidade.

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