O cipó de aroeira agora volta e com peso nas costas de quem mandou dar

Por Carina Acioly – Advogada Criminalista e professora universitária

É de uma ironia tão brutal que chega a doer nos ossos: o homem que por anos pregou que “bandido bom era bandido morto”, que relativizou a dignidade humana no cárcere, agora recebeu da Justiça a pena privativa de liberdade. Jair Bolsonaro foi condenado pela Supremo Tribunal Federal (STF) a 27 anos e três meses de prisão por crimes graves, entre eles tentativa de golpe de Estado, organização criminosa armada, atentado contra o Estado Democrático de Direito e outros delitos correlatos.

E então, como diz a música de Geraldo Vandré: “é a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar…”, pois o açoite moral, simbólico e jurídico retorna, como a lei que ele mesmo sancionou.

Mas a Justiça, quando do seu curso realmente justo, não conhece seletividade: o condenado, por mais que tenha empenhado sua vida pública em discursos punitivistas, passará a ter direito a todos os benefícios e garantias previstas na execução penal, direitos humanos e legais consagrados formalmente.

Em nosso ordenamento, a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984) prevê diversos direitos e garantias para pessoas privadas de liberdade, inclusive com a finalidade de reintegração social. Entre eles, destaca-se o benefício da saída temporária (a “saidinha”) para quem cumpre pena em regime semiaberto e preenche requisitos legais de bom comportamento, tempo de pena cumprido, compatibilidade com a pena e com os objetivos da execução penal.

Além disso, o preso tem garantido acesso à saúde, à assistência jurídica, à integridade física e moral, imperativos do Estado no cumprimento da pena e inerentes ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Isto significa que mesmo aquele que, durante anos, verteu discursos de ódio e desumanização contra quem cometeu crimes, ao ser julgado e sentenciado, torna-se destinatário dessas garantias. A lei não distingue entre quem já foi polarizador e quem foi defensor de direitos: o regime de execução vale para todos.

E esse fato oferece uma lição  (dura, talvez) sobre a universalidade do direito penal e dos direitos humanos: a pena não pode ser cirúrgica à ideologia ou à moral do condenado, mas deve obedecer aos cânones da lei, à justa dosimetria e à execução respeitosa dos preceitos legais e constitucionais.

Como advogada criminalista e defensora da técnica com humanidade, não há como ignorar: a pena cumpre múltiplas funções. Não se trata apenas de retribuir o “mal” cometido, mas, quando a lei e o sistema funcionam como devem, de prevenir novos delitos e de preparar o condenado para o retorno à sociedade, sempre que possível.

É verdade que o sistema prisional brasileiro contém máculas profundas: superlotação, precariedade nas condições de detenção, negligência estatal. Por isso, os direitos previstos na LEP não devem ser encarados como “privilégios”, mas como garantias mínimas da dignidade humana, mesmo quando se trata de quem fora condenado por crimes graves. Negar esses direitos ou relativizá-los é cometer o mesmo erro que muitos cometeram: ignorar que o Estado de Direito não se dobra diante de discursos de exceção.

A condenação do ex-presidente não é apenas um marco jurídico. É um recado claro à sociedade: ninguém está acima da lei. E, de forma quase poética e irônica, aquilo que ele sancionou, criticou, relativizou, hoje recai sobre ele: os rigores da execução penal, os direitos do preso, o ônus da responsabilidade criminal.

Hoje, ele poderá requerer, se preenchidos os requisitos, regime semiaberto, saída temporária, acesso à saúde e demais garantias legais. E mesmo se não for alcançado imediatamente, estará submetido aos rigores legais da pena: título que ele, em discursos, sonhou estender apenas aos outros. Assim, a “volta do cipó de aroeira” não tem sabor de vingança, mas de justiça: da lei que é, por sua natureza, impessoal, inexorável, implacável quando bem aplicada.

Como advogada, acredito que o sistema penal precisa de menos espetáculo punitivo e mais técnica comprometida com direitos. A condenação de agora deve servir de impulso para que todos nós, sociedade civil, Estado e operadores do Direito, nos empenhemos em transformar o cárcere em espaço de dignidade mínima, de respeito humano, de reintegração possível, sem ingenuidade, mas com firmeza.

E, quem sabe, para que jamais voltemos a compactuar com a ideia de que “bandido bom é bandido morto”. Porque mesmo a quem errou, a lei garante a cidadania digna, até na prisão. Pois, no fim, o cipó vai e volta, mas a justiça, se for verdadeira, não dobra.

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